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Luis Gustavo Morato Leite

Slow dentistry, a odontologia mais simples e humanizada.


Muitos de nós já passaram pela experiência de consultar um médico e o atendimento, apesar dos inúmeros exames solicitados, durar pouco mais do que 15 minutos. Apesar dos avanços na medicina e na odontologia para o desenvolvimento de técnicas cirúrgicas e diagnósticos mais precisos e medicações personalizadas, a qualidade desses atendimento não melhorou nas mesmas proporções.  Será a velocidade do atendimento profissional para minimizar os custos operacionais o responsável por essa interação menos humanizada ?

Acredito que essa suposição seja não apenas a única, mas uma das causas que impedem a humanização dos serviços em saúde. A busca por uma odontologia mais simples e humanizada vai além de surfar na onda do politicamente correto para regular as relações entre pacientes e profissionais da saúde, querendo também modificar a forma como as abordagens diagnósticas e terapêuticas são realizadas.

 

Por Luís Gustavo Leite, dentista em Porto Alegre, em texto inspirado em conversas com o dentista Tiago Fiorini, phd e professor de periodontia da UFRGS – o primeiro a me apresentar essas ideias.

 

 

A odontologia desacelerada.

 

A odontologia é um mercado saturado que induz os seus profissionais, como forma de obter vantagens competitivas, a diminuir o tempo de atendimento das duas consultas, aumentar o número de exames solicitados e medicações prescritas e optar pelo uso de materiais com qualidade duvidosa. Essas mudanças de atitudes no atendimento clínico diminuem os elevados custos operacionais dos consultórios odontológicos e podem viabilizar financeiramente o atendimento a pacientes oriundos de convênios de saúde – sinônimo de remuneração incapaz de cobrir os custos mínimos da maioria dos procedimentos odontológicos cobertos. Se a livre concorrência é um mecanismo que traz muitos benefícios para um mercado em franca competição, em saúde os efeitos dela são quase sempre perversos.

 

Em 2012, o médico inglês Richard Smith, articulista  do British Medical Journal, denunciou que um terço das despesas médicas do sistema de saúde americano não produz benefício algum. É exatamente o mesmo que já vinha denunciando o médico italiano Marco Bobbio, diretor do Hospital Santa Croce e Carle di Cuneo, no Piemonte, um dos centros de referência em cardiologia na Itália. Ao observar que uma grande parte do atendimento médico baseado em rápido contato com o paciente associado a numerosos procedimentos, exames e medicações não surtia nenhuma melhora nos seus pacientes, Marco deu início ao termo medicina desacelerada, baseada na maior interação entre o profissional e o paciente.

 

Na odontologia, o atendimento rápido na busca por custos menores pode ter efeitos ainda mais negativos. Procedimentos odontológicos dependem da habilidade manual pacienciosa e excelência da qualidade dos materiais dentários envolvidos – a diminuição do tempo de atendimento e corte nos custos operacionais são sempre catastróficos para o paciente. Uma analogia um pouco mais livre permite observar que os mesmos problemas irão aparecer ao se diminuir pela metade o tempo usado para barbear-se todos os dias com lâminas mais baratas. Diagnósticos, equipamentos e materiais mais modernos não são feitos para acelerar os atendimentos, mas para aumentar a precisão e qualidade dos resultados em saúde.

 

Por outro lado, o paciente também alimenta algumas distorções. Os pacientes estão cada vez mais impacientes e pouco dispostos a perderem o seu tempo, e um bom atendimento odontológico exige exatamente o oposto. Além disso, a grande avalanche de informações odontológicas disponíveis na internet leva o próprio paciente a fazer o seu diagnóstico, escolhendo o profissional e muitas vezes até solicitando exames. O paciente não entende que a interpretação e proposição de tratamentos em saúde não segue uma lógica matemática, já que os fenômenos biológicos tem seus próprios padrões de fenômenos, e muitas vezes o profissional acaba fazendo exatamente o que o paciente quer ao invés de sentar e conversar com o paciente sobre a correta interpretação dos dados. É uma atividade muito difícil mudar a convicção de um ser humano nos dias de hoje. Como já dizia Marcel Prost, “a verdade nunca penetra no mundo das crenças”.

 

A  inspiração da slow dentristy veio junto com o conceito de slow medicine, conceitos originados nos Estados Unidos, e ambos são, na verdade, oriundos do antigo conceito de slow food. Esse último também teve origem na própria Itália, e associa o prazer da boa comida a refeições lentas, à base de ingredientes locais produzidas com técnicas que protegem e valorizam o ambiente local. Em sintonia, a slow dentistry enfatiza a cooperação entre profissionais de saúde e pacientes com o pressuposto de um atendimento calmo e gratificante, encaminhando o paciente para o melhor atendimento humanizado possível. É preciso desacelerar o atendimento e também o próprio paciente.

 

 

A humanização dos profissionais em saúde.

 

Que o Brasil tem caminhado para o caminho errado é um ponto, hoje, impossível de ser negado. Estamos preocupados em formar os melhores médicos e os melhores engenheiros mas estamos nos esquecendo de formar os melhores seres humanos.  A ideia socrática de que as profissões são o meio de propagação dos ideais humanitários está bastante longe da realidade do nosso dia-a-dia. Coragem, fidelidade e altruísmo devem ser o principal ensinamento a qualquer curso superior.

 

Os nossos cursos de saúde estão focados na doença, e o nosso foco deveria ser o ser paciente. Pode ser um pouco complicado entender essa diferença, mas o próprio conceito de saúde elaborado pela OMS dá um melhor entendimento do conceito da slow dentistry : ” saúde é um estado de bem estar físico, mental e social”. Quando estamos focados apenas na doença estamos apenas solucionando – e isso quando estamos ! – a parte física do estado de bem estar do paciente. Os seres humanos são sensíveis ao meio em que vivem e o atendimento mais humanizado melhora o bem estar desse paciente. O corpo muitas vezes somatiza o estado psicológico do ser humano, e, além disso, muitas das soluções para um grande número de problemas de saúde está relacionado com mudanças de hábitos. É bastante complicado criar uma mentalidade positiva – necessária para as necessidades de mudança de hábito – em pacientes com algum tipo de déficit emocional. O dentista ou qualquer outro profissional de saúde deve estar atento a essa necessidade do corpo humano.

 

 

Mitos da odontologia HI-TECH na visão da odontologia desacelerada.

 

A tecnologia médica sempre acompanhou a evolução da medicina para diagnósticos mais precisos e tratamentos mais eficazes, mas por si só, não representar nada – equipamentos não são autônomos! A ciência médica – em termos mais simples, o homem – é a grande responsável pelos avanços médicos. O problema da associação exagerada da qualidade dos tratamentos a equipamentos odontológico de última geração é que ela reduz a atuação humana e implica o uso de tecnologia como fator  principal e indissociável da eficiência e resolutividade dos tratamentos médicos. 

 

Passando de auxiliar para indispensável, e de indispensável para desejável, a tecnologia invadiu e tomou conta de nossas vidas e ideias. São indiscutíveis as facilidades que esses dispositivos trazem às nossas vidas; o problema é que essas facilidades solucionam problemas gerados por essa mesma tecnologia. Não estamos com mais tempo livre, não estamos trabalhando menos, não estamos mais seguros, não estamos mais felizes. 

 

O laser na odontologia é uma dessas facetas sobre o uso de tecnologia de ponta nos seus procedimentos.

 

 

A odontologia não pode tudo.

 

A odontologia evolui muito nas últimas décadas mas não trouxe a solução para muitos dos problemas de saúde bucal. As resinas odontológicas ainda precisam melhorar suas propriedades, os implantes dentários precisam de evolução para áreas com pouco osso, os tratamentos de canal ainda não são totalmente precisos, os enxertos ósseos e de tecidos ainda estão em evolução. O paciente precisa entender que muitas vezes o caminho é o tratamento que vai resolver as suas necessidades reais e não os seus desejos. A publicidade atual é baseada na transformação da necessidade para o desejo, e muitos pacientes sofrem reflexo direto dessa linguagem constante e deturpada. O dentista consciente e paciente está preparado para lidar com esse paciente, orientando-o para a realidade e as possibilidades de tratamento que realmente importam.

 

 

Em odontologia, velocidade não é sinal de qualidade.

 

Um outro grande mito de nossa sociedade está relacionada com a velocidade de quase tudo. É o mito da instantaneidade, do instantâneo como qualidade incontestável de praticamente tudo. Da  velocidade dos processadores de celulares ou computadores, da rapidez de resposta e disposição de mensagens e email, a quase tudo que pode ser respondido de forma instantânea. O filósofo Martin Heidegger já chamava atenção aos problemas que a tecnologia da instantaneidade poderia causar à sociedade, e os problemas dessa instantaneidade estão ainda mais presentes em nossa vida. A velocidade e a instantaneidade não condiz com a maioria dos processos físicos, mentais, socais e até mesmo econômicos, e desse confronto com a ideia do instantâneo como valor mais que fundamental de qualidade advém o grande mal de nossa sociedade : ansiedade e egoísmo.

 

A odontologia é um tratamento de saúde que necessita, muitas vezes, da resposta biológica e comportamental do paciente, e essas respostas necessitam de tempo. A própria técnica odontológica necessita de tempo para ser aplicada. Tratamentos reabilitadores com implantes dentários e enxertos ósseos podem necessitar de anos para serem realizados,  assim como os tratamentos ortodônticos. Os pacientes estão procurando opções de tratamento aonde a velocidade é a prioridade, indo diretamente ao encontro do charlatanismo profissional que promove essa mesma velocidade como vantagem competitiva. E a indústria da saúde odontológica está bastante ciente dessa situação.

 

 

Quando o desejo vira necessidade.

 

A publicidade parece ser, nos dias de hoje, a arte de transformar as nossas necessidades em desejos. A necessidade humana de comunicação é transformada pelo desejo pelo celular mais descolado que ainda nem foi lançado. Há mais de um século os veículos são objetos de desejo e não de necessidade. Depois de tanto tempo envolvidos em um mundo cujas informações e sinalizações induzem a essa visão deturpada de nossas necessidades, quase mais nada é pura necessidade. Tudo é desejo, tudo é motivo para a ansiedade. Nós, dentistas, enfrentamos muitas dificuldades no manejo psicológicos com os pacientes nos dias de hoje. É bastante diferente o perfil psicológico dos pacientes de hoje comparado aos pacientes que eu atendia há mais de dezessete anos atrás. É um desafio que requer ainda mais preparo psicológico do profissional, ainda mais em odontologia aonde a ansiedade já é um fator naturalmente presente em muitos procedimentos.

 

Enfim, são os desafios do nosso tempo. Qual época tem seus próprios desafios, e enquanto nossas dificuldades foram essas ainda há muita esperança e recurso para que possamos colocar a vida e a sociedade em um caminho mais justo e saudável.

 

 

Os desafios da odontologia humanizada e desacelerada.

 

Os comerciais, programas televisivos e nosso zeitgeist particular mostram a grande imaturidade social e individual da sociedade brasileira. Apoiada na exibição de poder econômico e desprovida de valores morais e sociais consistentes, a odontologia apoiada na exibição de grandes infraestruturas clínicas e “sucesso” financeiro pessoal são referências de qualidade para a maior parte da população. Associada ao número desproporcionalmente elevado de dentistas decorrente da mercantilização do ensino superior no país e atuações obscuras de alguns segmentos econômicos, educacionais e representativos, o exercício profissional ético é um desafio que, felizmente, está enraizado em um número supreendente de dentistas, que esperam melhores condições econômicas e apoio representativo para melhorar a atuação do dentista brasileiro.

 

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